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«A Oração do Coração»
Henri Nouwen
A oração hesicástica,
que leva ao descanso em que a alma habita com Deus, é a oração do coração. Para
nós que damos tanta importância à mente, aprender a rezar com o coração e a
partir dele tem importância especial. Os monges do deserto nos mostram o caminho.
Embora não exponham nenhuma teoria sobre a oração, suas narrativas e seus
conselhos concretos apresentam as pedras com as quais os autores espirituais
ortodoxos mais tardios construíram uma espiritualidade magnífica. Os autores
espirituais do monte Sinai, do monte Atos e os startsi da Rússia oitocentista
apóiam-se todos na tradição do deserto. Encontramos a melhor formulação da
oração do coração nas palavras do místico russo Teófano, o Recluso: "Rezar
é descer com a mente ao coração e ali ficar diante da face do Senhor,
onipresente, onividente dentro de nós". No decorrer dos séculos, essa
perspectiva da oração tem sido central no hesicasmo Rezar é ficar na presença
de Deus com a mente no coração, isto é, naquele ponto de nossa existência em
que não há divisões nem distinções e onde somos totalmente um. Ali habita o
Espírito de Deus e ali acontece o grande encontro. Ali, coração fala a coração,
porque ali ficamos diante da face do Senhor, onividente, dentro de nós. É bom
saber que aqui a palavra "coração" é usada em seu sentido bíblico
pleno. em nosso meio, ela se tornou lugar-comum. Refere-se à sede da vida
sentimental. Expressões como "coração partido" e "sentido no
coração" mostram ser comum pensarmos no coração como o lugar quente onde
se localizam as emoções, em contraste com o frio intelecto onde têm lugar
nossos pensamentos. Mas, na tradição judeu-cristã, a palavra
"coração" refere-se à fonte de todas as energias físicas, emocionais,
intelectuais, volitivas e morais.
No coração, originam-se
impulsos impenetráveis, além de sentimentos, disposições e desejos conscientes.
O coração também tem suas razões e é o centro da percepção e do entendimento.
Finalmente, ele é a sede da vontade: faz planos e chega a uma boa decisão.
Assim, é o órgão central e unificador de nossa vida pessoal. Nosso coração
determina nossa personalidade e é, portanto, não só o lugar onde Deus habita
mas também o lugar ao qual Satanás dirige seus ataques mais ferozes. Esse
coração é o lugar da oração. A oração do coração dirige-se a Deus a partir do
centro da pessoa e, assim, afeta toda a nossa compaixão.
Um dos monges do deserto,
Macário, o Grande, diz: "A tarefa principal do atleta (isto é, do monge) é
entrar em seu coração". Isso não significa que o monge deva procura encher
sua oração de sentimento; signfica que deve esforçar-se para deixar que ela
remodele toda a sua pessoa. O discernimento mais profundo dos monges do deserto
é que entrar no coração é entrar no Reino de Deus. Em outras palavras, o
caminho para Deus é pelo coração. Isaac, o Sírio, escreve:
«Procure entrar
na câmara do tesouro... que está dentro de você e então descobrirá a câmara do
tesouro do céu. Pois ambas são a mesma coisa. Se conseguir entrar em uma, você
verá ambas. A escada para este Reino está escondida dentro de você, em sua
alma. Se você purificar a alma, ali verá os degraus da escada que deve subir.»
E João de Cárpato diz:
«É preciso
grande esforço e luta na oração para alcançar aquele estado da mente que é
livre de toda perturbação; é um céu dentro do coração (literalmente
'intracardíaco'), o lugar onde, como o apóstolo Paulo assegura, "Cristo
está em vós.» (2Cor13,5).
Em suas falas, os monges do
deserto nos indicam uma visão bastante holística de oração. Eles nos afastam de
nossas práticas intelectuais, nas quais Deus se transforma em um dos muitos
problemas com os quais temos de lidar. Mostram-nos que a verdadeira oração penetra
no âmago de nossa alma e não deixa nada sem tocar. A oração do coração não nos
permite limitar nosso relacionamento com Deus a palavras interessantes ou
emoções piedosas. Por sua própria natureza, essa oração transforma todo o nosso
ser em Cristo, precisamente porque abre os olhos de nossa alma à verdade de nós
mesmos e também à verdade de Deus. Em nosso coração passamos a nos ver como
pecadores abraçados pela misericórdia de Deus. É essa visão que nos faz clamar:
"Senhor Jesus Cristo, Filho do Deus vivo, tem misericórdia de mim,
pecador". A oração do coração nos exorta a não esconder absolutamente nada
de Deus e a nos entregar incondicionalmente a sua misericórdia.
Assim, a oração do coração é
a oração da verdade. Desmascara as muitas ilusões sobre nós mesmos e sobre Deus
e nos conduz ao verdadeiro relacionamento do pecador com o Deus misericordioso.
Essa verdade é o que nos dá o "descanso" do hesicasta. Quando ela se
abriga em nosso coração, somos menos distraídos por pensamentos mundanos e nos
voltamos mais sinceramente para o Senhor de nossos corações e do universo.
Assim, as palavras de Jesus: "Felizes os corações puros: eles verão a
Deus" (Mt 5,8) tornam-se reais em nossa oração. As tentações e as lutas
continuam até o fim de nossas vidas, mas com um coração puro ficamos
tranqüilos, mesmo em meio a uma existência agitada.
Isso levanta o problema de
como praticar a oração do coração em um ministério bastante agitado. É a essa
questão de disciplina para a qual precisamos agora voltar a atenção.
Oração e Ministério
Como nós, que não somos
monges nem vivemos no deserto, praticamos a oração do coração? Como ela
influencia nosso ministério cotidiano?
A resposta a essa pergunta
está na formulação de uma disciplina definitiva, uma regra de oração. As características
da oração do coração que nos ajudam a formular essa disciplina:
— A oração do coração
alimenta-se de orações breves e simples.
— A oração do coração é
incessante.
— A oração do coração inclui
tudo.
— Alimenta-se de Orações
Breves
No contexto de nossa cultura
verbosa, é significativo ouvir os monges do deserto nos aconselhando a não usar
palavras em excesso:
«Perguntaram ao
aba Macário: 'Como se deve rezar?' O ancião respondeu: 'Não há, em absoluto,
necessidade de fazer longos discursos; basta estender a mão e dizer: Senhor,
como queres e como sabes, tem misericórdia. E se o conflito ficar mais
ameaçador, dizer: Senhor, ajuda. Ele sabe muito bem do que precisamos e nos
mostra sua misericórdia.»
João Clímaco é ainda mais
explícito:
«Quando rezar,
não procure se expressar em palavras extravagantes pois, quase sempre, são as
frases simples e repetitivas de uma criancinha que nosso Pai do céu acha mais
irresistíveis. Não se esforce em muito falar, para que a busca de palavras não
lhe distraia a mente da oração. Uma única frase nos lábios do coletor de
impostos foi suficiente para lhe alcançar a misericórdia divina; um pedido
humilde feito com fé foi suficiente para salvar o bom ladrão. A tagarelice na
oração sujeita a mente à fantasia e à dissipação; por sua natureza, as palavras
simples tendem a concentrar a atenção. Quando encontrar satisfação ou contrição
em determinada palavra de sua oração, pare nesse ponto.»
Essa é uma sugestão muito
útil para nós que tanto dependemos da capacidade verbal. A tranqüila repetição
de uma única palavra ajuda-nos a descer com a mente ao coração. (Também a base
da OC, nota da autora do site). Essa repetição nada tem a ver com mágica. Não
tem o propósito de enfeitiçar Deus, nem de forçá-lo a nos ouvir. Pelo
contrário, uma palavra ou sentença repetida com freqüência ajuda-nos a nos
concentrar, a nos mover para o centro, a criar uma tranqüilidade interior e,
assim, a ouvir a voz de Deus. Quando simplesmente tentamos ficar sentados em
silêncio e esperar que Deus nos fale, nos vemos bombardeados por intermináveis
pensamentos e idéias conflitantes. Mas quando usamos uma sentença bastante
simples como: "Ó Deus, vem em meus auxílio", ou "Jesus, mestre,
tem piedade de mim", ou uma palavra como "Senhor" ou
"Jesus", é mais fácil deixar as muitas distrações passarem sem nos
deixarmos iludir por elas. Essa oração simples, repetida com facilidade,
esvazia aos poucos nossa vida interior apinhada e cria o espaço sossegado onde
habitamos com Deus. É como uma escada pela qual descemos ao coração e subimos a
Deus. Nossa escolha de palavras depende de nossas necessidades e das
circunstâncias do momento, mas é melhor usar palavras da Escritura.
Quando somos fiéis a essa
oração simples e a praticamos com regularidade, ela nos conduz devagar a uma experiência
de descanso e nos abre à presença ativa de Deus. Além disso, em um dia muito
atarefado, podemos levar essa oração conosco. Quando, por exemplo, passamos, no
início da manhã, 20 minutos sentados na presença de Deus com as palavras:
"O Senhor é meu pastor", elas lentamente constroem em nosso coração
um pequeno ninho para si mesmas e ali ficam o restante de nosso dia atarefado.
Até enquanto falamos, estudamos, cuidamos do jardim ou construímos alguma
coisa, a oração continua em nosso coração e nos mantém conscientes da
orientação onipresente de Deus. A disciplina não é agora dirigida para um
discernimento mais profundo do que significa chamar Deus de nosso Pastor, mas
para a íntima experiência da ação pastoral de Deus em tudo que pensamos,
dizemos ou fazemos.
Incessante
A segunda característica da
oração do coração é ser incessante. A pergunta de como seguir a ordem de Paulo:
"Orai incessantemente" foi fundamental no hesicasmo desde a época dos
monges do deserto até a Rússia oitocentista. Há muitos exemplos desse interesse
nos dois extremos da tradição hesicástica. (Vejamos um dos principais:)
....
Na famosa história do
Peregrino Russo lemos:
«Pela graça de
Deus sou cristão, mas pelas minhas ações sou um grande pecador... No vigésimo
quarto domingo depois de Pentecostes, fui à igreja para ali fazer minhas
orações durante a liturgia. Estava sendo lida a primeira Epístola de S. Paulo
aos Tessalonicenses e, entre outras palavras, ouvi estas: 'Orai
incessantemente' (1Ts 5,17). Foi esse texto, mais que qualquer outro, que se
inculcou em minha mente, e comecei a pensar como seria possível rezar
incessantemente, já que um homem tem de se preocupar também com outras coisas a
fim de ganhar a vida.»
O camponês foi de igreja em
igreja, para ouvir sermões, mas não encontrou a resposta que queria.
Finalmente, encontrou um santo staretz que lhe disse:
«A oração
interior incessante é um anseio contínuo do espírito humano por Deus. Para
sermos bem-sucedidos nesse exercício consolador, precisamos suplicar com mais
freqüência a Deus que nos ensine a rezar sem cessar. Rezar mais e rezar com
mais fervor. É a própria oração que lhe revela como rezá-la sem cessar; mas leva
algum tempo.»
Então, o santo staretz
ensinou ao camponês a Oração de Jesus: "Senhor Jesus Cristo, tem
misericórdia de mim". Enquanto viajava como peregrino pela Rússia, o
camponês passou a repetir essa oração com os lábios. Até considerava a oração
de Jesus sua companheira verdadeira. E, então, um dia, teve a sensação de que a
oração passou sozinha de seus lábios para seu coração. Ele diz:
«... parecia
que, pulsando normalmente, meu coração começava a dizer as palavras da oração a
cada batida... Desisti de dizer a oração com os lábios. Passei simplesmente a
ouvir o que meu coração dizia.»
Aqui aprendemos outro jeito
de chegar à oração incessante. A oração continua a rezar dentro de mim, até
enquanto falo com os outros ou me concentro no trabalho manual. Ela se torna a
presença ativa do Espírito de Deus que me guia pela vida.
Desse modo vemos como, pela
caridade e pela atividade da oração de Jesus em nosso coração, nosso dia todo
se transforma em oração contínua. Não sugiro que imitemos o peregrino russo,
mas que, também nós, em nosso ministério atarefado, nos preocupemos em rezar
sem cessar, para que, seja o que for que comamos ou bebamos, seja o que for que
façamos o façamos pela glória de Deus. (Veja 1Cor 10,31). Amar e trabalhar pela
glória de Deus não pode permanecer uma idéia sobre a qual pensamos de vez em
quando. Deve se tornar uma incessante doxologia interior.
Inclui Tudo
Uma última característica da
oração do coração é que ela inclui todos os nossos interesses. Quando entramos
com a mente no coração e ali ficamos na presença de Deus, então todas as nossa
preocupações mentais se transformam em oração. O poder da oração do coração é
precisamente que, por meio dela, tudo que está em nossa mente se transforma em
oração.
Quando dizemos a alguém:
"Vou rezar por você", assumimos um compromisso muito importante. É
uma pena que esse comentário muitas vezes não passe de uma expressão de
interesse. Mas, quando aprendemos a descer com nossa mente em nosso coração,
todos os que fazem parte de nossa vida são guiados à presença curativa de Deus
e tocados por ele no centro de nosso ser. Falamos aqui de um mistério para o
qual palavras são inadequadas. É o mistério em que o coração, centro de nosso
ser, é transformado por Deus em seu coração, um coração grande o bastante para
abraçar todo o universo. pela oração, carregamos em nosso coração toda a dor e
tristeza humanas, todos os conflitos agonias, toda a tortura e a guerra, toda a
fome, solidão e miséria, não por causa de alguma grande capacidade psicológica
ou emocional, mas porque o coração de Deus uniu-se ao nosso.
Aqui vislumbramos o sentidos
das palavras de Jesus:
«Tomais sobre
vós o meu jugo e sede discípulos meus, porque eu sou manso e humilde de
coração, e encontrareis descanso para vossas almas. Sim, o meu jugo é fácil de
carregar, e o meu fardo é leve.» (Mt 11,29-30).
Jesus nos convida a aceitar
seu fardo, que é o do mundo todo, um fardo que inclui o sofrimento humano em
todos os tempos e lugares. Mas esse fardo divino é leve e podemos carregá-lo
quando nosso coração se transforma no coração manso e humilde de nosso Senhor.
Vemos aqui o íntimo
relacionamento entre oração e ministério. A disciplina de conduzir todo o nosso
povo com suas lutas ao coração manso e humilde de Deus é a disciplina de oração
e também do ministério. Enquanto o ministério significar apenas que nos
preocupamos muito com as pessoas e seus problemas; enquanto significar um
número interminável de atividades que dificilmente conseguimos coordenar, ainda
dependeremos muito de nosso coração tacanho e ansioso. Mas quando nossas
preocupações são elevadas ao coração de Deus e ali se transformam em oração,
ministério e oração se tornam duas manifestações do mesmo amor universal de
Deus.
Vimos como a oração do
coração se nutre de orações breves, é incessante e inclui tudo. Essas três
características mostram como a oração do coração é o alento da vida espiritual
e de todo o ministério. Na verdade, essa oração não é apenas uma atividade
importante, mas o próprio centro da nova vida que queremos representar e na
qual queremos iniciar nosso povo. As características da oração do coração
deixam claro que ela exige uma disciplina pessoal. Para levar uma vida de
oração não podemos passar sem orações específicas. Precisamos dizê-las de uma
forma que nos ajude a ouvir melhor o Espírito que reza em nós. Precisamos
continuar a incluir em nossa oração todas as pessoas com as quais e para as
quais vivemos e trabalhamos. Essa disciplina vai nos ajudar a passar de um
ministério entontecedor, fragmentário e muitas vezes frustrante para um
ministério integrador, holístico e muito gratificante. Ela não vai facilitar o
ministério, mas simplificá-lo; não vai torná-lo doce e piedoso, mas sim
espiritual; não vai fazê-lo indolor e sem lutas, mas tranqüilo no verdadeiro
sentido hesicástico."
FONTE:
NOUWEN, Henri J. M. A
Espiritualidade do Deserto e o Ministério Contemporâneo - O Caminho do Coração.
São Paulo: Ed. Loyola, 2000.
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